Por Marcus Everson Santos (*)
Em linhas gerais, para muitos dos intérpretes da Modernidade, seu aparecimento representou uma grande revolução geográfica, econômica, política, social, intelectual e científica. No âmbito geográfico, significou o deslocamento da cultura do Mar Mediterrâneo para o Atlântico; no econômico, transcorreu a colonização de novas terras e o estreitamento das relações entre o Ocidente e o Oriente, bem como a ruptura com o modelo feudal e a ascensão da burguesia; no político, com o surgimento do Estado Moderno e a centralização de poder nas mãos dos soberanos; no social, com a laicização da cultural e o declínio da Idade Média; no intelectual, com o advento de um novo espírito cientificista e racionalista e a ascensão de narrativas utópicas acerca do futuro aperfeiçoamento técnico e científico da sociedade. No âmago de tais narrativas, construiu-se a expectativa de que as “Luzes” – o progresso técnico-científico – enterrariam para sempre a “Idade das Trevas” e ergueria uma nova sociedade administrada por uma comunidade de cientistas.
Entres os arautos dessas mudanças, estavam autores tais como Thomas Morus e sua obra A Utopia; Tommasio de Campanella e A cidade do Sol; João Amós Comenius e seu ideal pansófico presente na obra Didática Magna, bem como Francis Bacon em seu livro inacabado A Nova Atlântida. Ao seu modo, cada uma das obras citadas infundiram no público da época grandes expectativas sobre o progresso vindouro da sociedade desde que fosse administrada por cientistas.
Tal como nos revela a “ilha de utopos” de Morus, o conhecimento científico acabaria com as desigualdades sociais e criaria o estado de bem-estar social justo para todos; na comunidade solariana de Campanella, a formação de cidadãos tinha em vista a edificação de uma sociedade estruturalmente desenvolvida e governada somente por aqueles que tivessem alcançado desempenho máximo nas artes, ciências naturais e liberais; para Campanella, cabia aos magistrados solarianos o gerenciamento da igualdade social a ampliação da formação técnica e científica para todos; Comenius idealizou a educação moderna organizando-a por meio da ampla democratização de seu acesso a todos. Compendiando e organizando todo o conhecimento disponível na época, Comenius idealizou a criação de um método de ensino que atendesse a todos. Além da Didática Magna, em sua obra Panorthosia, Comenius descreve uma República ideal – nos moldes da República de Platão – exortando uma reforma mundial de todas as sociedades, antecipando a utopia da dissolução das soberanias nacionais e a criação de uma governança global proposta atualmente fomentada por organismos internacionais como a ONU e a UNESCO.
O sonho de ser senhor e possuidor de seu próprio destino mobilizou os sentimentos do homem moderno; o surgimento de princípios como o da liberdade, igualdade e fraternidade universal entusiasmou seu coração, mas não por muito tempo, nem tão pouco, sem grande derramamento de sangue. A criação de uma comunidade global igualitária, feito miragem, logo cedeu espaço ao controle social pela técnica e pela ciência. Galvanizado pelo movimento intelectual das “Luzes”, o ideal de emancipação intelectual carregava em seu bojo uma impossibilidade lógica: conciliar emancipação individual com o crescente poder do Estado e de conglomerados financeiros. Contrariando todas as expetativas, “ser moderno” passou a significar que todos os domínios da experiência humana fracassaram. O Imperialismo, o Comunismo, o Nazismo e o Fascismo são herdeiros diretos do ímpeto gerenciador e de amalgama social. Sob a promessa de emancipação do indivíduo, todos esses regimes foram erguidos com as mesmas ferramentas da técnica e da ciência.
A ciência como salvação criou uma nova mitificação: a do total controle do indivíduo sob a propaganda de que se estava trabalhando para um mundo melhor. A suposta demolição dos ídolos – empecilhos à mente humana – da ciência antiga abriu espaço para ideologias salvacionistas. Um dos principais expoentes desse movimento de demolição da ciência antiga e de construção de uma comunidade científica foi o filósofo londrino Francis Bacon. Suas ideias inspiraram a Royal Society que se tornou uma das mais importantes comunidades científicas da Modernidade. Em seu livro “Novo Organon”, Bacon propunha o seguinte:
Os ídolos e as noções falsas que ocultam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.
(BACON, 1979, p. 20-21)
Para Bacon, estar precavido contra falsos argumentos que impediam o espírito humano de chegar a verdades mais seguras por meio da experiência significava tomar providências necessárias frente ao peso teórico do escolasticismo medieval. Para romper esse obstáculo e com vistas a instaurar uma Nova Ciência, Bacon propunha que:
“A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos. Será, contudo, de grande préstimo indicar no que consiste, posto que a doutrina dos ídolos tem a ver com a interpretação da natureza, o mesmo que a doutrina dos elencos sofísticos com a dialética vulgar.”
(BACON, 1979, p. 21)
Para escapar da arbitrariedade das argumentações sofísticas e das deduções silogísticas da filosofia antiga que, segundo Bacon, emperravam o progresso das ciências, era necessário lançar outro olhar sobre a natureza usando novas ferramentas. Tratava-se de levar a cabo a construção de um “Novo Organon” que impedisse o intelecto humano de assumir posições equivocadas e desprezando a força das novas descobertas:
O intelecto humano, à mercê de suas peculiares propriedades, facilmente, supõe maior ordem e regularidade nas coisas que de fato nelas se encontram. Desse modo, como na natureza existem muitas coisas singulares e cheias de disparidades, aquele imagina paralelismos, correspondências e relações que não existem. Daí a suposição de que, no céu, todos os corpos devem mover-se em círculos perfeitos, rejeitando por completo linhas espirais e sinuosas, a não ser em nome.
(BACON, 1979, p.23)
Vê-se, a partir da crítica de Bacon, que a nova ciência rejeita os antigos modelos cosmológicos formulados por meio do silogismo marcante no pensamento de Aristóteles e sua visão astronômica sobre a harmonia das esferas:
[…] O intelecto humano não é ‘luz pura’ pois recebe influência da vontade e dos afetos, onde se pode gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreia a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e efêmeras.
(BACON, 1979, p.25)
Esforçando-se por abdicar das armadilhas do pensamento escolástico e do amparo da forte presença da Teologia, o racionalismo científico de Bacon ensejou colaborar, portanto, para um projeto de sociedade radicalmente diferente daquele que havia sido a Idade Média, aplicando novas esferas metodológicas com ênfase no estudo e na compreensão empírica dos fenômenos.
A ciência moderna entusiasticamente proposta por Bacon visava abarcar a natureza e suas leis, transformando-as em um corolário da razão humana. Entretanto, a despeito de grandes conquistas técnicas – no chão da realidade -, o radicalismo e o dogmatismo técnico-científico continuaram obstruindo o intelecto humano; o método indutivo-experimental – como bem mostrou o empirismo cético de David Hume – não nos permite formular juízos universais e dogmáticos; no limite, diria Hume, conhecemos apenas o número de ocorrências probabilísticas de certo evento no tempo e no espaço. Aderindo ao ceticismo de Hume, Karl Popper, em seu livro A lógica da Pesquisa Científica, afirma:
Ora está longe ser óbvio, de um ponto de vista lógico, haver justificativa no inferir enunciados universais de enunciados singulares, independentemente de quão numerosos sejam estes; com efeito, qualquer conclusão colhida desse modo sempre pode revelar-se falsa: independentemente de quantos casos de cisnes brancos possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes são brancos.
(POPPER, 1972, p. 27-28)
O problema do método indutivo nas ciências nos mostra que não podemos formular juízos universais a partir de dados empíricos. Não importa quantas vezes tenhamos registrado uma dada experiência, pois ela não nos garante uma certeza absoluta. Entre aqueles que participam da chamada comunidade científica, persiste a busca por uma maior ordem e regularidade das coisas que de fato nelas não existe. Frente às singulares e disparidades científicas, o homem de ciência continua imaginando paralelismos, correspondências e relações. E, bem como já apontava Bacon, a luz da razão humana não é plena, pois recebe influência tanto da vontade quanto de seus afetos.
A impaciência da investigação, a ausência de sobriedade, a arrogância e o orgulho continuam requentando utopias salvacionistas. A conversão da razão emancipatória e autônoma em razão técnica e científica fez surgir o mito da sociedade administrada pela ciência e pela técnica. A utopia de uma Nova Atlântida – uma civilização governada por geômetras – logo se revelou sombria, posto que, desde Bacon, o homem de ciência, continuou inclinado, sobretudo nas chamadas Ciências Humanas, a ter por verdade o que prefere. A experiência tateante da comunidade científica não demoliu a arrogância e os vícios dos idólatras. A suposta demolição dos ídolos abriu espaço para novas, e algumas já requentadas, ideologias progressistas.
A parafernália técnica e científica que se desenvolveu na Modernidade ofereceu aos Estados e conglomerados financeiros a capacidade de aumentar seu poder sobre os indivíduos. A propósito, o próprio Bacon já afirmava: “Saber é poder”. Não há dúvidas sobre o crescente poder que a sociedade administrada ganhou sob a promessa de que, com o progresso das ciências, o homem finalmente conquistaria a paz e concórdia universal. A questão da recomposição estatal da ordem pública por meio da aplicação das ciências tornou-se de grande interesse, posto que não se tratava apenas de infundir novos valores e conhecimentos, mas também, de se construir um forte gerenciamento público das finanças do Estado.
A crença no progresso como visão unificadora e salvacionista da sociedade tomou gradativamente o lugar da fé religiosa. Aproximando-se cada vez mais da herança teológico na história, a ideia de progresso contínuo da humanidade emergiu em um mundo cada vez mais administrado pelos recursos do cálculo e das ciências. A crença salvacionista de que aquilo que está por vir será melhor do que o que passou parece ter determinado o modelo público de gerenciamento da sociedade.
Com o advento do cálculo estatístico e probabilístico, tornou-se possível apontar as chances matemático-objetivas de a sociedade seguir rumo ao paraíso terrestre prometido. Sem apoiar-se na ciência, o Estado corria sério risco, sobretudo, quando se tratava de levar adiante qualquer projeto político e social. A avaliação do custo e dos benefícios de execução de novos projetos públicos demandava o gerenciamento matemático das contas. A transposição de valores da esfera meramente especulativa para a matemática surge como proposta centralizadora de “regeneração” social via ciência. Por diversos motivos aqui expostos, essa proposta revela-se como um novo credo substitutivo. Para supostamente abolir as “trevas” da sociedade antiga, novas máscaras passam a revestir os mesmos credos utopistas. O controle centralizado do conhecimento por uma comunidade cientifica financiada pelo governo ou megacorporações foi magistralmente desconstruído por Friedrich Hayek em seu ensaio “O uso do conhecimento na sociedade”, quando afirmou que:
O caráter peculiar do problema da ordem econômica racional é determinado precisamente pelo fato de que o conhecimento das circunstâncias, do qual devemos fazer uso, nunca existe de uma forma concentrada ou integrada, mas apenas como bits dispersos daquele conhecimento incompleto e frequentemente contraditório que todos os indivíduos isolados possuem.
(HAYEK, 1945, pág.154)
Em resumo, o que o Hayek revelou foi que não há como monopolizar ou concentrar o conhecimento disperso em uma única comunidade cientifica estatal. Há e sempre haverá um quantum de conhecimentos dispersos individualmente. Qualquer proposta de sociedade administrada por uma comunidade científica, tal como ensejaram as utopias da Modernidade, deve considerar que há um quantum de conhecimento que permanecerá sempre descentralizado. Tal como afirma Hayek, a utilização do conhecimento não é dado a ninguém em sua totalidade. Qualquer planejamento central está fadado ao fracasso, uma vez que sempre haverá conhecimento disperso entre todas as pessoas.
Argumentos empírico-matemáticos acerca da realidade expressam apenas sistemas teóricos e apontam apenas um recorte da realidade. A observação de qualquer fenômeno empírico está sempre sujeita a erros em decorrência tanto dos instrumentos de observação quanto das diferenças individuais do observador. Posto isso, toda e qualquer medida matemática desses dados vem acompanhada de erros. A consequência desse fato é que o número que descreve um dado empírico deve vir acompanhado também de algum tipo de erro provável. Analisados sob o ponto de vista estatístico, tais números descrevem apenas se o atributo empírico está dentro dos limites de aceitabilidade de certa medida.
Como afirma Hayek (1945), há e sempre haverá algum tipo de conhecimento que jamais entrará na malha do poder Estatal ou das grandes corporações, posto que jamais poderá ser transmitido por meio de relatórios estatísticos. Em vista disso, quaisquer que tenham sido as narrativas que permitiram o nascimento da Modernidade – tal como a mitificação da sociedade aperfeiçoada pela técnica e pela ciência – serviu apenas para a construção atual de velhos ídolos sob novas máscaras. O ambiente epistemológico da comunidade científica transformou-se em verdadeiro campo minado por interesses políticos e ideológicos. A proposta de demolição dos chamados empecilhos à mente humana propugnada pela filosofia moderna de Bacon sucumbiu à força do propósito político partidário e à avidez pelo dinheiro público estatal mancomunado com grandes corporações oligárquicas.
Sensacional! Achei especialmente importante a ideia de que, embora o precesso científico-empírico goste de se colocar acima dos afetos e acima da inclinação humana para certas ‘verdades’, até ele mesmo é incapaz de proporcionar uma visão completa da realidade; se limitando a recortes teóricos e estando sempre sujeito a ruídos estatísticos e erros de métrica. Acredito que seja de extrema importância- principalmente para o cientista propriamente dito- sempre ter em mente as limitações do sistema em que se trabalha e não atribuir a ele idolatria nem um caráter infalível se o que se procura é de fato nos aproximar da verdade e da objetividade dos fatos.
Ótimo artigo! Excelente trabalho do professor em sintetizar as origens do cientificismo e das ideologias tecnocratas, bem como descrever sua evolução histórica. Tema muito atual e que muito tem a ver com a engenharia social feita pelos governos contemporâneos. Parabéns ao professor!
Sempre brilhante, instigador e preciso, Professor Marcus Éverson. Que a Luz do seu Conhecimento continue trazendo mais firmeza e segurança em nosso Caminho.