Por Léo Mittaraquis (*)
Como a fermentação no vinho, jorrava nela a expectativa de que morte e horror não fosse a última palavra da verdade.
Robert Musil, O homem sem qualidades
Vinho e literatura sempre andaram de mãos dadas. Diria eu, sem receio de exagero, que o rubro [também tirante ao rosa, ao dourado, ao palha] líquido entremeia-se na tessitura literária do Ocidente desde tempos homéricos. Lemos em Odisseia: “Aí estavam também grandes jarros de vinho velho e doce, bebida divina, livre de qualquer mistura; os jarros estavam junto à parede, para o caso de Odisseu regressar um dia a casa, depois de terríveis sofrimentos”. O vinho como um certificado de dignidade e cura da carne e do espírito.
O vinho é parte essencial da cultura humana há mais de 6.000 anos e o seu alto significado na literatura é indiscutível. A bebida tem sido retratada nas obras literárias como um símbolo de riqueza, luxo, prazer, comunhão. E, também, a depender das circunstâncias, de desregramento, portanto de embriaguez excessiva.
Sob seus efeitos, os personagens expressam emoções distintas. Eis, mediante taças, copos e barris, o amor, a alegria, a tristeza e o desespero. A hospitalidade, a generosidade e a vida em proximidade com outrem.
O vinho, então, tem sido empregado como metáfora da vida, da morte e da condição humana.
Quanto aos escritos que trazem em seu conteúdo o vinho na condição de fator e personagem, estou a considerar, aqui, produções filosóficas e produções literárias clássicas como irmãs. Mais de uma vez, as primeiras confundem-se com as segundas.
O fato é que a obra de Homero, alvo de prospecção tanto da filosofia como da literatura, desde o início da formação estética da cultura europeia, parecia presumir várias possiblidades a partir do vinho.
A bebida foi parte comum da vida de então. Em várias ocasiões foi considerada mais segura de beber do que a água.
Salto da helênica planície para o novo mundo americano, ainda que a trazer na poeira das sandálias mercurianas retraços de Shakespeare e, em “O Som e a Fúria”, de William Faulkner, a vínica nobreza mais uma vez é reconhecida nas palavras da senhora Bland: “Eu trouxe vinho porque acho que um jovem cavalheiro deve beber vinho”.
Claro que, para quem conhece a obra, sabe que Faulkner põe estas palavras na boca da personagem de forma um tanto trocista. E o desenrolar do curioso diálogo insinuará isto. Contudo, a bebida, resultante da fermentação alcoólica total ou parcial do mosto da uva, quase que também discursa. Não só de maneira mais formal, galanteadora, mas, também, mais festiva, descontraída.
Parece dizer, nas palavras de Hemingway, que é “não só tão saudável e normal como a comida, como ainda grande proporcionador de felicidade, de bem-estar e de prazer”.
Ler um bom livro, seja obra clássica ou contemporânea, e beber, página a página, um rótulo correto, honesto, ainda que de origem simples, é fruição que enriquece os momentos.
E não estou aqui a incorrer, bem entendido, na afirmação, sem lastro algum, de que se deve buscar a harmonização entre o que se lê e o que se bebe. Balela!
Se o exercício de harmonização entre o vinho e o alimento físico [leitura é alimento da alma], não obstante calcar-se em dados empíricos comprovados, acontece sobre o semovente terreno da subjetividade, imaginem querer firmar a adequada sintonia de varietais e assemblages com seja lá qual obra literária.
A verdade, a pura verdade, é que, neste campo, bebemos o que queremos enquanto lemos o que queremos.
Voltemos à vinífera presença na literatura. Aliás, partamos da nórdica América e voltemos à Europa, mais precisamente para Londres, com uma breve passagem pelos pântanos, a bordo dum coche guiado por “cocheiro de aluguel envolto em gorduroso casaco”, orientado pelo velho Charles Dickens.
Em minhas reflexões de botequim, disse, mais acima, que o vinho, também personagem, tem sua fala. Silenciosa, porém, plenamente audível ao espírito.
Em “Grandes Esperanças”, de Dickens, temos emblemático exemplo disso: “Quando ele e eu ficamos sozinhos, Mr. Jaggers sentou-se com um ar de perfeita tranquilidade, talvez por causa das informações que possuía sobre qualquer um, o que realmente era demais para mim. Ele interrogava o próprio vinho do porto, quando não tinha outra coisa em mãos. Segurava o cálice entre ele e a chama da vela, provava o porto, rolava-o dentro da boca, depois engolia, olhava novamente para o copo, cheirava o vinho, provava, bebia, enchia outra vez o cálice, e interrogava o copo de novo, até que fiquei bastante nervoso, como se soubesse que o vinho estava lhe contando alguma coisa desabonadora sobre mim. Três ou quatro vezes, pensei fracamente em começar uma conversação; mas sempre que ele percebia que eu estava a ponto de perguntar-lhe alguma coisa, olhava para mim com o copo na mão, rolando o vinho na boca, como para me fazer entender que seria inútil, pois ele não poderia responder”.
O mais se pode dizer diante de descrição tão potente, tão profunda? O animismo presente torna a cena ainda mais fascinante e assustadora: o vinho fala, acusa, denuncia. Um cálice que não se cala, conta tudo, revela.
Coisas assim produzem algo como que aura benjaminiana. Valores intangíveis, mas, com toda a certeza, essenciais ao cultivo do bom espírito, e deste com que é belo e que faz bem.
Rótulos clássicos conversam bem com títulos clássicos. Não porque implicam numa harmonização aferida por um sommelier. E, sim, tão somente, pelos valores pulsionais e espirituais aos quais inspiram.
Por falar em clássicos, vem a mim trecho tragicômico de “O Engenhoso Fidalgo Sir Quixote de La Mancha”: o cavaleiro da triste figura perfura vários odres de vinho, imaginando estar lutando contra gigantes. E quase é morto a socos pelo estalajadeiro que assiste ao seu precioso vinho a escorrer pelo chão.
O vinho também tem sido utilizado como metáfora na literatura, onde representa as complexidades e contradições da existência humana. Notadamente na poesia.
Em “Ode ao Rouxinol”, de John Keats, o vinho é uma metáfora para a inspiração poética, ao caráter inerente a um princípio que ultrapassa radicalmente a realidade sensível. O poeta deseja escapar da dor e do sofrimento. Assim, busca refúgio na beleza, no mistério da natureza: “Ah! um gole de vinho refrescado longamente/Na solidão do solo muito além do chão/Sabendo a flor, a seiva verde e a relva quente/Dança e Provença e sol queimando na canção!”
E como não lembrar, aqui, do conto “O Barril de Amontillado”, de Edgar Allan Poe, um dos meus favoritos.
O primeiro conto do escritor americano que li em meados dos anos setenta.
O vinho impõe importante papel num projeto de vingança muito bem articulado: “O Fortunato tinha o seu lado fraco, embora, a outros respeitos, fosse um homem acatado e até temido. Orgulhava-se de ser conhecedor de vinhos. Poucos italianos têm o verdadeiro espírito do ‘conhecedor’. Na maior parte, seu entusiasmo adapta-se às circunstâncias do momento e da oportunidade, para ludibriar milionários ingleses e austríacos. Em matéria de pintura e ourivesaria era, Fortunato, semelhante a seus patrícios, um impostor, mas em assunto de vinhos velhos era sincero”.
Vinho e vingança? Os dois termos começam com o mesmo fonema e, no conto, gênero literário de enganadora simplicidade, aí sim, harmonizam-se à larga.
Fortunato ofendera a Montresor mais de uma vez. Agora pagaria por isso. E pagou bem caro: “Mal havia eu começado a acamar a primeira fila de tijolos, descobri que a embriaguez de Fortunato se tinha dissipado em grande parte. O primeiro indício disto que tive foi um surdo lamento, lá do fundo do nicho. Não era o choro de um homem embriagado. Seguiu-se então um longo e obstinado silêncio. Deitei a segunda camada, a terceira e a quarta e depois ouvi as furiosas vibrações da corrente. O barulho durou vários minutos, durante os quais, para gozá-lo com maior satisfação, interrompi meu trabalho e me sentei em cima dos ossos”.
Pois bem, improvável leitor, eis uma tímida incursão pelo tema vinho na literatura. O objeto é bem maior do que minha capacidade de dissertar sobre ele. Espero, pois, ter contribuído dalguma maneira no intuito de gerar interesse.
Nada mais a dizer…
MAKTUB!!!
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