Se comes, tu bebes

Vinhos e Versos – Báquica bebida em Baudelaire

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

Constantin Guys tem um mérito profundo que lhe é peculiar; desempenhou voluntariamente uma função que outros artistas desdenharam e que cabia  sobretudo a um homem do mundo preencher. Ele buscou por toda a parte a beleza passageira e fugaz da vida presente, o caráter daquilo que o leitor nos permitiu chamar de Modernidade. Frequentemente estranho, violento e excessivo, mas sempre poético, ele soube concentrar em seus desenhos o sabor amargo ou capitoso do VINHO DA VIDA.

Charles Baudelaire, artigo incluído no volume L’Art Romantique, coletânea de artigos de crítica de arte, publicados postumamente em 1869.

 

Valer-me-ei, para a composição destas páginas, as quais, talvez, mereçam mais a cesta de lixo do que a publicação neste conspícuo veículo de comunicação, de, basicamente, três obras: “As Flores do Mal”, de Charles Baudelaire; “Baudelaire por Gautier & Gautier por Baudelaire – Dos biografías românticas” (versão em espanhol do original em francês) e “Baudelaire”, de Théophile Gautier.

Prumodequê? Bem, vinhos e poemas (equivale a “encher a cara e ler” – ambos em demasia) são, se não a minha praia, ao menos uma pequena e modesta enseada duma ilha ignota aos demais. Quanto à primeira, preferira que fora outro o tradutor/transversor. Mas – c’est la vie, c’est le vin –, quem não tem Oswaldino Marques caça com Ivan Junqueira.

Inquirirá o leitor, com justeza e de direito: “Mas, oh, então, mandrião, porque tu mesmo não traduzes/transvertes?”. Responderei eu: “Mon noble monsieur, « mon » français est insignifiant et horrible face à une entreprise aussi immense”.

Entre os cultos e os que, o sejam ou não, assim se julgam, é voz corrente que o opiáceo (ou nem tanto) poeta consolidou-se como um dos autores mais influentes do século XIX.

Acrescento, com segurança, que continuou a sê-lo por alguns decênios do século 20, pelo menos até a década de 80. Após o que, como tudo que tange ao conhecimento fundamentado e decente das Artes, inclusa a Literatura, sofreu o milenial abalo, sendo eclipsado pela estupidez e pela superficialidade.

Nostalgia e ressentimento da minha parte? Claro que sim! Tenho no espírito algo de lagosta, atraem-me os mistérios das profundezas.

Charles Baudelaire foi lançado, em grande parte por ele mesmo, ao centro das atenções, ao escrever e publicar suas perspectivas sobre sexo, morte, homossexualidade, depressão, revolução, violência, solidão e vício. Quanto à vida doméstica, se assim posso denominá-la, esta foi marcada pela espontânea e caprichosa acrimônia, por problemas de saúde e infortúnio financeiro. Apesar desses obstáculos, ele conseguiu deixar sua marca indelével em três campos sobrepostos: crítica de arte, poesia e tradução literária. É em relação ao primeiro que ele pode ser creditado por fornecer a conexão filosófica entre as eras do Romantismo Francês, Impressionismo e o nascimento do que hoje é considerado Arte Moderna.

Creio que, aqui, no sentido de comentar de forma mais geral, antes de me concentrar nos viníferos aspectos específicos, possa afirmar que a produção poética de Baudelaire representa a condenação de outra proposta literária que tenha como objeto a uma pieguice, a um moralismo ignorante. Mas, cuidemo-nos de, por isso, “entender” o discurso do poeta como uma exortação ao cultivo da “inutilidade” da arte. Como bem observa o emérito crítico e historiador da literatura, Vitor Manuel de Aguiar e Silva, para Baudelaire “a obra de literária autêntica, que procura realizar a beleza e que não mutila nem deforma preconcebidamente a realidade da vida, não colide com a moral, antes se encontra com ela num sentido mais elevado”.

Edgar Allan Poe, escritor e crítico literário que exerceu forte influência sobre Baudelaire

Ora, sim, sei que, ao leitor mais experiente, e que lê Baudelaire, algo, evidentemente, se apresenta muito mais interessante e produtivo do que ler estas linhas. O parágrafo acima, ainda que não deva ser contestado in toto, requer a observação de que o poeta natural de Paris, admirador de Edgar Allan Poe, parece se contradizer ao afirmar ser necessário ao poeta substituir a natureza pelo homem e protestar contra a primeira.

Bem, quiçá desejasse nos convencer de que devemos ceder à embriaguez, não só a provocada pelo vinho (nosso objeto de interesse, por ora), como a induzida pelo ópio, pelos fortíssimos perfumes e licores. E que assim nos disponhamos a adentrarmos nos paraísos artificiais.

Mas para adicionar mais uma mão de tempero a esta sopa de letrinhas que lhes sirvo, ressalto, novamente, o sedutor contraditório em Baudelaire, quando este confessa dever a Poe a consciência de que, em meio ao processo criativo, é necessário raciocinar. Reconhece que depende da inteligência e que o labor poético é atividade cotidiana.

Ah, claro que não posso prosseguir, de forma coerente, caso esqueça de tecer comentários a Gautier. Sobre este… bem, vale repetir que escreveu sobre Charles Baudelaire. Para que não houvesse dúvidas sobre o objeto da obra, intitulou a mesma “Baudelaire”.

Théophile Gautier é legítimo e extremoso filho do Romantismo. Adversário declarado dos utilitaristas. Contudo, não tendo confundido beijo de jegue com arroz doce, nem rabo de jegue com corneta, jamais negou a utilidade maravilhosa detida pelo vinho.

E como o son of a bitch escrevia bem! A maneira pela qual descreve física e intelectualmente Baudelaire é de, após se ler, aplaudir de pé. Verdadeira sinfonia de palavras muito bem aplicadas. Não admira que, ao lê-las, me veja como um moleque iniciante mal saído dos cueiros.

Well… Ditas as coisas acima, um estilizado enchimento de linguiça, é bem verdade, tratemos doravante, de maneira mais cuidadosa e comprometida, da relação do poeta com o vinho.

Em mais de uma composição a bebida se faz presente.

No poema XXI, “Hino à Beleza”, na primeira estrofe, diz o poeta: “Vens tu do céu profundo ou sais do precipício/Beleza? Teu olhar, divino, mas daninho/Confusamente verte o bem e o malefício/E pode-se por isso comparar-te ao vinho”.

Repare, leitor, na última estrofe do poema XXVIII, “A Serpente que Dança”: “Bebo de um vinho que me infunde/Amargura e calma/Um líquido céu que difunde/Astros em minha alma!”.

E mais estes versos em que o vinho tem o seu lugar, no poema XLIX, “O Veneno”: “Sabe o vinho vestir o ambiente mais espúrio/Com seu luxo prodigioso/E engendra mais de um pórtico miraculoso/No ouro de um vapor purpúreo/Como um sol que se põe no ocaso nebuloso”.

Entre os estudiosos, da vida e da obra de Charles Baudelaire, há os que afirmam que ele não era dado a excesso algum. Buscava, na verdade, manter-se sóbrio, preservar a inteligência e o talento.

Comum se ler em resenhas, artigos e ensaios que, longe de abusar do álcool, Baudelaire fala do vinho como “um potenciador da vida”, um apelo à viagem e à fuga, para escapar à posição social. Foi um dos raros poetas da época a destacar o vinho mantendo-se sóbrio.

Retrato de Théophile Gautier, em 1856, por Félix Nadar

Eis relato de Théophile Gautier: “Como todos los laboriosos, Baudelaire era sobrio por temperamento. Aun admitiendo el afán de crearse un «paraíso artificial» mediante cualquier narcótico, opio, «haschisch», vino, alcohol o tabaco, tendencia que podemos observar en todos los tiempos y en todos los pueblos salvajes o civilizados, él advertía en este prurito una prueba del pecado original, um sacrílego anhelo de escapar al dolor necesario, una pura maña satánica para robarnos la felicidad posterior que tenemos reservada como recompensa a las virtudes cardinales y al impulso persistente hacia la belleza y el bien” (Théophile Gautier & Charles Baudelaire: Baudelaire por Gautier & Gautier por Baudelaire – Dos biografías românticas)

O vinho, seja a bebida em si ou sua forte referência simbólica, até mesmo mística, foi por Baudelaire evocado, no construir duma lógica de fuga. O vinho representará para os pobres, sejam eles “pessoas honestas” como em “A Alma do Vinho” “catadores de trapos”, marginais da noite ou um “assassino”, a única possibilidade de criar a ilusão do viver plenamente, escapando à dor, à solidão, à violência, enfim à pobreza durante certo tempo.

O que fez, para convencer ao meio de que era um dândi cerebral (como diria Gustav R. Hocke, em “Maneirismo – O Mundo Como Labirinto), que era um pervertido e um satanista, foi esconder suas virtudes, fato ressaltado por Gautier.

Segundo Gautier, “Baudelaire era de uma natureza sutil, complicada, arrazoadora, paradoxal e mais filosófica do que é, em geral, a dos poetas”.

Século dezenove. Nas palavras de Gautier, um novo mundo a nascer. Neste contexto, devemos considerar que uma alma monstruosa (ou que simulasse sê-lo) atrairia atenções.

Portanto há aqueles que não hesitam em afirmar que Baudelaire era famoso por sua propensão ao vinho (junto com drogas, sexo e outros excessos).

A imagem arquetípica de Baudelaire, isto é, como um “dândi decadente” tem como consequência, principalmente para os leitores desavisados, velar a elegante e complexa estética das suas linguagem e mensagem.

Seu modo de ver e viver o mundo sustentou tal complexidade. Nas décadas de 1840 e 1850, Charles Baudelaire cultivou extensas conexões com artistas contemporâneos. No mesmo período, Charles participou das Revoluções de 1848, tentou suicídio e foi processado por ofender a religião e a moralidade pública com seu livro Les Fleurs du mal . O clamor público resultou na retirada de Les Fleurs du Mal das vendas (embora tenha sido reintroduzido mais tarde com algumas alterações). No geral, o poeta lutou contra problemas de saúde e dívidas, ainda que mantivesse produção literária intermitente.

Vinho… Esta báquica bebida se fez presente, todo o tempo, em meio aos acontecimentos descritos acima. Com alguns o poeta se envolveu, outros por ele foram provocados.

O vinho, reapresentado por Baudelaire, mediante seu teor metafísico, sua musicalidade, seu poder de induzir à alienação social, seu caráter sinestésico, deve ser compreendido como elemento inseparável da produção lírica do visionário, idealista, extravagante parisiense.

Com vinho e versos Baudelaire fundamentou, com maestria, boa parte de sua literatura.

Santé 🍷

 

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Leo Mittaraquis

Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Mantém o Projeto "Se Comes, Tu Bebes". Instagram: @leo.mittaraquis

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